quarta-feira, 8 de outubro de 2008

Simulacro de uma solidão

Por Aline Valim

O espetáculo Simulacro de uma solidão aborda a vida e a obra da poeta Ana Cristina Cesar

Poetas como Ana Cristina Cesar, Torquarto Neto, Paulo Ramos Filho, Francisco Alvim e Paulo Leminski são sobreviventes de uma geração em que a poesia ganha outra dimensão. A poesia não é mais um ente deslocado da vida. A vida passa a ser gerida como ato poético. O comportamento do poeta influi na sua produção, isto é, o corpo é pensamento. Seguindo esta linha de raciocínio pode-se perceber a coerência existente entre estes poetas chamados de “marginais”. Esta geração combatia “justamente o objetivismo da geração antecedente tanto na política quanto na estética”.
O espetáculo Simulacro de uma solidão, da Áprika Cooperativa de Arte, que esteve em cartaz recentemente no Teatro da UBRO, trata da obra e da vida de Ana Cristina Cesar e é fiel à construção conceitual poética por ela estruturada. Dirigido por Jefferson Bittencourt e com Marisa Naspolini em cena, o universo do monólogo tenta compor variações existências da poeta carioca, que se atirou da janela de seu apartamento em 1983, a partir de textos retirados de sua obra.
Uma mulher só num vagão de trem espera alguém/algo que a tire da angústia e da solidão. Ela inventa fantasias, fugas, lugares de conforto, realidades, espelhos, o outro e a si mesma. A mesa posta para duas pessoas, vinho servido para duas pessoas. O duplo: o fantasma. Como toda montagem baseada em relatos, diários, cartas e poemas, o problema quase sempre surge na composição da dramaturgia. Com o Simulacro de uma solidão não é diferente. O jogo com o público não acontece e a dramaturgia do espetáculo não se revela.
A personagem (supostamente a própria Ana Cristina Cesar) tenta estabelecer uma relação dramatúrgica com os elementos em cena, mas não consegue. A trilha sonora, por exemplo, que vai de Billie Holliday a Cartola concorre com o espetáculo. A disputa acontece por não haver justaposição entre a cena e a música. O cenário, embora de uma beleza plástica extremada, é preciso ressaltar que Bittencourt é um poeta dos palcos, não revela sua função cênica.
A atriz Marisa Naspolini peca em alguns momentos. O uso do papel, um dos instrumentos de trabalho do poeta, se esfacela. Há uma cena, no manuseio do papel, que escapa ao esfacelamento. A personagem rasga uma folha e a sobrepõe próximo as orelhas. Contudo, a cena toma outro tom e perde a tensão criada. A alusão feita ao suicídio de Ana precisa ser trabalhada e a escolha pela personagem infantil para tratar do tema não nos parece a mais apropriada ao espetáculo. Em muitos momentos os textos de Ana perdem a força e a sua poesia vem ao público com pouco impacto. Existe uma caracterização, um falseamento na fala da personagem.
Marisa, professora do Departamento de Cênicas da UDESC, comete deslizes infantis. No momento em que ela manuseia os talheres fica evidente a falta de tempo e composição cênica, o que poderia ser uma cena altamente trágica e simbólica, pois metaforiza a queda, e foi numa queda que Ana se desencontrou, se torna uma cena fugaz, banal, sem força dramática. Quando a personagem diz “nem tudo é um naufrágio na vida, mas um dia eu me afogo no álcool.” Perdemos a noção exata da ironia e da tensão contida no verso.
Simulacro de uma solidão precisa ser revisto. No espetáculo reside o germe para seu aprimoramento. No entanto, a dramaturgia, que se faz ausente durante quase todo espetáculo, irrompe na cena em que a personagem dança consigo, simulando, com sua indumentária, a presença do outro. Necessário revelar que o figurino (Fernando Marés e Marisa Naspolini) é preciso e conduz a metáfora do outro-imaginário. No momento em que a personagem dança com o outro-imaginário - ela toda de preto, o outro-imaginário de chapéu e sobretudo - a dramaturgia do espetáculo se concretiza por alguns minutos. A espera, a solidão, a angústia, a dor, enfim, surgem neste momento de pura poesia, onde finalmente luz, som, corpo, movimento se integram. E é isto, explorar poesia em cena exige que o espetáculo seja um poema, um bom poema.
O que temos, no momento, é, digamos assim, “eu sei fazer”. Olha como eu sei dirigir? Olha como eu sei atuar? Olha como eu sei fazer um cenário? Olha como eu conheço de música? Mas o todo não se completa. Confesso-me uma apaixonada pelo trabalho do diretor e músico Jefferson Bittencourt (Nem mesmo a chuva tem mãos tão pequenas, O coração delator, Outside, Castelo de cartas...), mas desta vez ele perdeu a direção. Há, evidentemente, tempo para reelaborar o espetáculo, para tanto é preciso priorizar a poesia de Ana Cristina César. E como diria o crítico e poeta Willian Hazlitt: “A poesia é a linguagem da imaginação e das paixões. Relaciona-se com tudo que causa prazer imediato, ou dor,à mente humana. Atinge a intimidade e a atividade dos homens: porque apenas o que os afeta da maneira mais geral e ininteligível pode ser um tema de poesia. A poesia é a linguagem universal que o coração liga à natureza e si próprio. Aquele que despreza a poesia não pode ter muito respeito a si próprio, nem por nada.”
O que falta para Simulacro de uma solidão é usar todos os elementos teatrais de forma harmônica para dar organicidade ao espetáculo, pois está tudo ali. Se dividirmos o espetáculo teremos partituras perfeitas, mas desconexas. Cenário, música, luz, atuação precisam encontrar suas medidas. O grande desafio reside aí. Uma boa revisão no texto também se faz urgente. Da maneira como ele se apresenta no palco, o público não afeito ao universo poético de Ana Cristina César sai sem perceber a força da sua escritura.
Aline Valim é poeta autora de Sittah

Um comentário:

Ana C disse...

Bom, não soube como preencher o vácuo de Ana C que encontrei à porta do teatro. Agora, estou consolada. Crítica ajustada num belo texto. E de nada, quem agradece sou eu.