quarta-feira, 8 de outubro de 2008

A crítica e o pedigree

Por Marco Vasques


A Crítica e o Pedigree


“[...] seu anonimato é peça chave pra que as pessoas analisem seus argumentos sem criticá-la pessoalmente [...]”

(Jefferson Bittencourt in www.momento-critico.blogspot.com)


Vou me manifestar porque fui citado, desabonado e depreciado no artigo intitulado Sobre ética e crítica em tempos de internet, DC, 20/9/08. Para começar, quero dizer que sempre tive espaço em jornais e revistas especializadas de literatura. Tenho cinco livros publicados e um reconhecimento que rendeu críticas, nas páginas da Ilustrada (Folha de São Paulo), do Estadão e de O Globo, assinadas por conceituados críticos de literatura (Ítalo Moriconi e Silviano Santiago, por exemplo). Recebi críticas, publicadas em outros jornais de Santa Catarina e de fora do estado, de críticos que não conheço (e de cuja identidade, portanto, nem sequer posso ter certeza), mas os textos, somente eles, me interessaram, mesmo quando a crítica me era desfavorável. Dirigi alguns espetáculos teatrais e acompanho o teatro produzido em Santa Catarina de perto, pois é área de meu interesse. Sou colaborador do DC Cultura faz mais de seis anos, onde sempre assinei meus artigos, críticas e entrevistas. Fui colaborador de periódicos no Rio de Janeiro, São Paulo, Rio Grande do Sul e Paraná. Sou articulista de literatura em jornais impressos e em várias revistas eletrônicas. Não tenho nada a esconder, de maneira que posso me manifestar, emitir minhas opiniões, refletir sobre qualquer obra de arte que vejo sem subterfúgios. Assim me apresento porque parece ser imprescindível mostrar o pedigree; sem pedigree, não se pode ter voz.
Tenho consciência de que alimentei o imaginário de algumas pessoas em relação à criação de Sara Kane. Para que saber quem é Sara Kane? Pouco importa se Sara Kane é Marco Vasques ou qualquer outro apreciador ou espectador do teatro catarinense. O que importa, isto sim, é o que Sara Kane escreve. O importante é refletir sobre o que está sendo questionado e exposto. A discussão sobre autoria é uma discussão que vem se arrastando na pós-modernidade. Quem não lembra da exposição Desenhos de Antelo, do artista plástico Fernando Lindote? Lindote produz a obra de arte e Raul Antelo assina.
Aline Valim existe porque escreveu sobre quatro espetáculos no DC Cultura: De Malas Prontas, O Espantalho, Jardim das Delícias e Simulacro de uma Solidão. A crítica feita ao espetáculo Simulacro de uma Solidão, que tem como âncora a vida e obra da poeta carioca Ana Cristina Cesar, gerou a discussão. Acusam-me de “dupla identidade” sem parecer saber o que significa, juridicamente, ter dupla identidade e as implicações reais dessa acusação, como também parecem desconhecer que ter um pseudônimo não corresponde a ter “dupla identidade”.
Quando me citam, os autores do artigo pedem que eu faça com que Aline Valim se apresente aos dois – fique claro – porque querem conhecê-la para atestar o seu pedigree, porque não aceitaram a crítica ao seu espetáculo simplesmente por não conhecerem nem Aline nem seu currículo. Suponho que se Aline Valim quisesse conhecê-los, ela mesma os procuraria.
Cabe uma pergunta: por que ninguém quis conhecer Aline Valim quando os textos dela emitiam análises positivas acerca de outros espetáculos? Por que as únicas pessoas que se manifestaram contra Sara Kane foram as que tiveram, de alguma forma, apontamentos negativos em relação a suas montagens? Por quê?
Se alguém escolheu o pseudônimo de Sara, certamente sabia o motivo pelo qual fez essa opção. Assim como Anton Tchékhov sabia por que se mantinha oculto pelo pseudônimo Antocha Tchekonte, só para ficarmos no âmbito do teatro, porque são tantos os artistas que usaram e usam de pseudônimo na história da arte que seria fastidioso enumerá-los.
Assisti ao espetáculo Simulacro de uma Solidão duas vezes e, se não concordo com tudo que Aline Valim disse sobre a peça, posso afirmar que a obra de Ana Cristina Cesar e sua poesia não aparecem no palco. As grandes questões de sua poética estão longe de estar traduzidas em cena. Quem não conhece um único texto da poeta sai do espetáculo com a imagem de uma Ana infantilizada, transformada em um personagem sobre o qual o espectador não se sente instigado a procurar saber mais, o que é lamentável.
Contudo, a crítica sem pedigree, para eles, não tem substância nem valor, ao que parece. E como sou um escritor, um poeta, por certo que eles não vão levar minha análise em consideração, pois, supostamente, não tenho pedigree para falar sobre o trabalho deles, mas eles têm pedigree para analisar poemas e traduzi-los para o palco, mesmo, salvo engano, sem nunca terem escrito um único verso. Devo dizer que este é apenas um exercício dialético, uma vez que meu entendimento é o de que toda arte traz em si a poesia: dança, teatro, música, artes plásticas, etc. Quando bem orquestrados, resultam em grandes poemas que exalam poesia.
O que é um “crítico de peso”? Uma classificação como essa, no meu humílimo entendimento, denota uma atitude fascista. Questionar a procedência do autor e não o texto em si e ainda caluniar publicamente uma pessoa é postura ética? Discutir o anonimato de um texto é uma questiúncula. A crítica da crítica é importante, contanto que ela se restrinja ao campo da escritura, da análise e dos conceitos desenvolvidos na crítica. Escrever um artigo sobre ética e desqualificar o suposto autor de um texto em questões pessoais é um paradoxo, um contra-senso e não contribui em nada para o debate em questão: o debate estético.
Muitas pessoas, inclusive da classe teatral, me procuraram para prestar solidariedade e mostraram-se incrédulas com a postura dos artistas em questão, pois perderam o ponto da discussão, desfocando um debate que poderia ser profícuo ao teatro catarinense.
Em Santa Catarina, gerou-se o hábito de reclamar aos berros dos governantes, da falta de dinheiro para a cultura, da falta disso e daquilo. E, como escritor e ocupante de um cargo público de cultura, acho essas discussões salutares. No entanto, quando se discute estética, aí a coisa vai para o brejo. Eu gostaria que existissem inúmeras Alines Valins, independentemente de quem fossem. Cinema, literatura, artes plásticas, dança, enfim, toda expressão artística deveria contar com uma Aline Valim.
Tenho enorme admiração por Aline e pela sua coragem de dizer o que pensa, de provocar, de lembrar ao teatro catarinense que há muito a ser aperfeiçoado e que não há deuses. Eu me manifesto solidário a Aline Valim. Vida longa a Aline! Sara Kane ressuscitou! Vida longa a Sara! Eu, se fosse Aline, continuaria analisando o que se faz na arte dramática catarinense. Ela tem todo o direito de fazer esse exercício. Além disso, desconfio que o pior destino de uma obra de arte seja o silêncio, seja ele real ou virtual. Você publica um livro, monta uma peça teatral, faz uma exposição, os jornais noticiam e nada mais acontece. Ninguém comenta o evento, ninguém emite uma análise sequer. Isso é comum em Santa Catarina. E é triste. O crítico, portanto, é um ser generoso, e sua crítica aponta caminhos que o criador não percebe ou ignora.
E parece que o senhor Jefferson Bittencourt concorda com isso, pois assim se manifestou em comentário no blog de Sara Kane (geradora de “desconforto e ira entre os grupos e artistas devido à sua insistência no anonimato”), em março de 2007: “Olá Sara. Só passando pra te dizer que leio continuamente seu blog ... não há verdadeiramente um espaço de crítica teatral nessa cidade e você está bravamente criando um ... seu anonimato é peça chave pra que as pessoas analisem seus argumentos sem criticá-la pessoalmente (prática muito comum nessa cidade) ... torço pra que você continue sempre ... um grande abraço”.

Marco Vasques é escritor, poeta, crítico literário e bacharel em Filosofia pela Universidade Federal de Santa Catarina. Foi criador e editor do jornal de arte Capitu Traiu! Autor dos livros Cão no Claustro (Letradágua, Joinville, 2002), Harmonias do Inferno (edição do autor, Florianópolis, 2005), Elegias Urbanas (Bem-te-vi, Rio de Janeiro, 2005), Diálogos com a Literatura Brasileira – volume I (EdUFSC/Movimento, Florianópolis/POA, 2004) e Diálogos com a Literatura Brasileira – volume II (EdUFSC/Movimento, Florianópolis/POA, 2007), entre outros. Como diretor de teatro, montou Valsa no 6, de Nelson Rodrigues entre outros.

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