segunda-feira, 27 de outubro de 2008

Eu, entre os homens


Entre os homens. Jantar em que minha aparição se deu. Já há quatro homens que me conhecem. Eu existo, viu!

terça-feira, 21 de outubro de 2008

Seleção Oswald de Andrade

1

Meu amor me ensinou a ser simples
Como um largo de igreja
Onde não há nem um sino
Nem um lápis
Nem uma sensualidade


2

Para dizerem milho dizem mio
Para melhor dezem mió
Para pior pió
Para telha dezem teia
Para telhado dizem teiado
E vão fazendo telhados


3


Os negros discutiam
Que o cavalo sipantou
Mas o que mais sabia
Disse que era
Sipantarrou


4

As mulheres andam tão louçãs
E tão custosas
Que não se contetam com os tafetás
São tantas as jóias com que se adornam
Que parecem chovidas em suas cabeças e gargantas
As pérolas rubis e diamantes
Tudo são delícias
Não parece esta terra senão um retrato
Do terreal paraíso

segunda-feira, 20 de outubro de 2008

Amilcar Neves/ Diário Catarinense

O papel da crítica

Em fevereiro de 1980 foi publicado por aqui o artigo O crítico papel da crítica. As epígrafes saíram do então Novo Dicionário Aurélio:"Crítico. Adj. Grave, perigoso. Embaraçoso, difícil, perigoso."
" Crítica. S.f. Arte ou faculdade de julgar produções de caráter literário, artístico ou científico, ou outras manifestações dessa natureza. Juízo crítico; discernimento, critério."
Prosseguia o texto, após citar um duelo a floretes:
"Trocando em miúdos: a função da crítica é julgar produções de caráter literário com discernimento, critério. O objeto da crítica é pura e tão-somente a obra; o criticado é o livro, e não o autor. Daí porque não faz sentido alguém se julgar pessoalmente (ou até moralmente) ofendido por um juízo não muito favorável a um trabalho seu - são contingências inerentes a quem se expõe publicamente ao editar alguma obra. E se a crítica adversa e justa não sair em letra de forma, sairá ao menos oralmente, de boca em boca.
"Por outro lado, se à crítica falecerem seus atributos indispensáveis de discernimento e critério, sosseguem, pois não terá havido crítica, apenas um amontoado de mesquinharias - ou de aplausos ocos e risíveis, conforme o caso.
"O fato é que os escritores costumam detestar opiniões desfavoráveis a seus livros, contos, poemas ou crônicas, enquanto os críticos temem comprar a inimizade dos autores se forem muito sinceros no que têm a dizer. E chega-se assim à situação atual em Santa Catarina, com pouquíssimos críticos militantes a transmitirem a imagem de uma invejável uniformidade na produção literária que se faz no estado. Não há referências marcantes, tudo o que se publica apresenta diversos pontos positivos dignos de nota - e nunca se ressaltam eventuais e inevitáveis traições às nobres e boas intenções do autor.
"A crítica, parece-nos, só pode ser útil no momento em que analisar uma obra, qualquer obra, de uma forma global, com seus prós e contras. Ademais, seria no mínimo excesso de pretensão do crítico imaginar que sua apreciação será definitiva, condenando ou glorificando inapelavelmente obra e autor.
"O que parece necessário observar é o papel fundamental da crítica para o bom desenvolvimento de uma literatura. Ideal seria se houvesse mais críticos a analisar a quantidade do que se produz em SC, inclusive até com opiniões divergentes sobre determinada obra."
O que mudou em 28 anos?
Amílcar Neves, escritor.

sexta-feira, 10 de outubro de 2008

Living Theatre: Thomas e Judith Malina


Por GERALD THOMAS

Confesso que meus joelhos estavam trêmulos quando o “yellow cab” me deixou na esquina da East Houston com Clinton Street, em Nova York. Andei alguns passos, e tomei fôlego para ir até os “headquarters” do Living Theatre. Vi a preparação de “Eureka”, adaptação de texto de Edgar Allan Poe que estreou nesta semana no espaço do grupo, e subi ao segundo andar, onde mora Judith Malina, sua diretora. O Living Theatre foi um dos grupos de teatro mais influentes do mundo. Sem a filosofia deles, não teríamos hoje o Oficina, no Brasil . Sim, é triste sim, porque a última vez em que nos vimos, em maio, ela estava deitada numa esteira no meio da sala, dezenas de pessoas ao redor. Seu companheiro de 40 anos, Hanon Reznikov, havia morrido no dia anterior. Eu tinha ido ao enterro em Paramus, Nova Jersey. Ela nos olhava como se seu mundo fosse acabar ali. O mundo da última beat iria acabar sem deixar um último berro, um último manifesto: Hanon morreu abruptamente, de um derrame, aos 57, de repente. Durante o enterro, eu não parava de olhar pra essa jovem alemã pequena, de 82 anos, que também me olhava e cochichava em meus ouvidos “What went wrong, Gerald?” (O que deu errado, Gerald?). Ambos olhávamos o caixão em que o corpo de Hanon cozinhava num calor de 32ºC e meus olhos iam pra tumba de Julian Beck (1925-1985), o primeiro marido de Judith, líder e fundador do Living Theatre, também enterrado ali. Eu estava no enterro do Julian em 1985. Ele morreu durante a turnê de um espetáculo meu, a “Beckett Trilogy”, em que atuou, pela primeira vez fora do seu Living. Beck e Beckett, onde um homem ouvia sua própria voz em três fases diferentes de sua vida no passado. As filas no La MaMa davam voltas no quarteirão: o povo sabia que ele estava com câncer terminal. Eu fazia o meu meta-teatro e eles vieram dizer o seu adeus. Um homem quase morto ouvindo vozes do passado: era de levantar a pele! Na semana passada, subindo as escadas pro apartamento, depois de seis meses sem vê-la, encontrei-a bem humorada, às vezes aos prantos, jovial, energética e divertida. Levantou num pulo. Algumas várias lágrimas durante a entrevista. Judith Malina receberá a Ordem do Mérito Cultural do Ministério da Cultura brasileiro na próxima terça, em cerimônia a ser realizada no Teatro Municipal do Rio, com a presença do presidente Luiz Inácio Lula da Silva e do ministro da Cultura, Juca Ferreira. Em 1971, membros de seu grupo foram presos acusados de participar de atividades subversivas. Leia abaixo trechos da conversa com Malina.
JUDITH MALINA - Ainda não posso ser deixada sozinha. Nunca fui deixada sozinha desde o Julian, que me colocava três refeições por dia na mesa… Não sou bipolar, mas sou exagerada, você me conhece, tenho energia demais e preciso exercitá-la
GERALD THOMAS - Mas todos te vêem como uma super-mulher. A batalhadora, quase invencível.
MALINA - Que nada. Sou inútil pra coisas práticas. Não sei lidar com coisas reais, atender um telefone, nunca precisei escrever um cheque, não sei o que é uma conta de luz.
THOMAS - E o espetáculo, “Eureka”?
MALINA - Estamos fazendo essa produção com garra e com zero tostões.
THOMAS - Mas com vocês foi sempre assim…
MALINA - Mas agora vendemos todas as pinturas de Julian e não sei como continuar. Você sabe que as coisas pioraram no mundo do teatro.
THOMAS - Nem me fale!
MALINA - Aqui e no mundo inteiro. Precisamos berrar mais do que nunca. Ou seremos enterrados vivos. Estou indo pro Brasil receber uma medalha de honra de reparação de danos. Gosto muitíssimo do Brasil. Aliás, é o país de que mais gosto. Brasil primeiro, Itália depois e, sei la qual é o terceiro.
THOMAS - Você vai dar workshops na Casa das Artes de Laranjeiras…
MALINA - Porque sinto que os atores brasileiros têm fome de saber. Te abraçam com tudo e se jogam sem medo. Nos outros lugares estão com muito medo. Eu sou sobrevivente de guerra e me pergunto: “medo de quê”?
THOMAS - Te conto: ator hoje tem medo de falar de como perdeu a virgindade, a caretice é enorme. Crêem que a história começou ontem.
MALINA - Não que sejamos nostálgicos. Mas existe uma geração que deletou ou não absorveu toda uma cultura de demonstração, de contracultura, de agitprop. Por isso quero escrever meus diários e o que Erwin Piscator me ensinou.
THOMAS - Uma condecoração no Brasil substitui o tempo que você ficou presa?
MALINA - Nada vai tirar aquilo da minha memória. Foi horrível, por isso esse diário da prisão é importante.
THOMAS - No início da década de 60, o teu teatro revolucionou o mundo. Na década de 70, você estava confinada numa prisão em Minas Gerais. Hoje, você tem liberdade para viajar e berrar. Mas adianta?
MALINA - Quero abraçar o mundo com as pernas, com os braços. Amo tudo isso, amo estar viva e percebo que o mundo inteiro é um fracasso. Temos de rir.

Poemas de Eugênio de Andrade

Fadiga

Falar é fatigante. De todas as estrelas, a mais rouca e ácida é também a mais próxima. O inverno convida à promiscuidade, os olhos acabam por cair no curral - quem não amou um porco?
Nenhum lugar de amor é triste, mesmo uma estrebaria pode ser o paraíso.


A beleza

Chovera. Que sorte ter nos meus olhos essa melancólica praça quase deserta, os oiros glaucos de Bellini espalhados pelas lajes molhadas e os verdes todos, do esmeralda ao musgo, escurecidos pela noite que se avista já de algumas mansardas. Porque a belezaa, ou é esta entrega a quem de súbito a descobre, ou se esconde, cruel, a quem faz da sua procura uma perseguição de carniceiro
Apelo
De vez em quando paramos de crescer. É da chuva, do frio, desta humidade a que estão sujeitos no norte ossos e barcos, árvores e pedras. É então grande a tentação da pocilga. Como se o fecundo calor do porco fosse uma promessa, um apelo, às nossas trevas, do sol escondido na palha apodrecida.

quarta-feira, 8 de outubro de 2008

Isto me lembra algo bem próximo

Depoimento de Décio de Almeida Prado tendo escrito
uma crítica com apenas 29 anos acerca da companhia de Eva Todor


"E fiz a crítica, não sei se desfavorável, mas uma crítica severa. O publicitário da companhia, que, ao mesmo tempo, tinha ligações no jornal, foi lá reclamar ao dr. Júlio de Mesquita Filho. O Estado sempre tinha uma linha generosa com o teatro, exatamente porque não dava muita importância ao teatro. O publicitário criticou, e o dr. Júlio me chamou para uma explicação."
Décio de Almeida Prado, Folha de São Paulo, 6/7/1997

Respostas aos textos

Por Aline Valim

Lucien: harmonia não significa espetáculo linear e coeso. Mesmo nos espetáculos onde imperam as colagens e o uso de múltiplas linguagens, mesmo quando se propõe uma certa quebra, mesmo na aparente desarmonia, existe harmonia. Isto não acontece em Simulacro de Uma Solidão. A “colagem de fragmentos” pressupõe unicidade mesmo na modernidade, aliás, o que entendes por modernidade? Mais: minha crítica não é “juvenil”, embora tenha apenas 28 anos. Domino os elementos e conceitos a que me propus discutir. Outra coisa: em momento algum fiz crítica pessoal aos artistas para justificar a ladainha emocional de Jefferson Bittencourt e Marisa Naspolini. Obrigada pelo texto, muito bom mesmo, embora discorde dos pontos expostos.

Olivetto: “deslizes infantis”, na crítica, significa um ato poética quebrado, não realizado por falta de apuro técnico. Significa ainda: uma ação quebrada, não propositadamente, mas por falta de reflexão na/sobre (a) cena. Este negócio de se saber o lugar de onde se fala é balela, o que interessa é o que se fala, o texto é uma fala!. Ah! E não "chutei a porta" porque não agredi ninguém. Fiz uma texto crítico sem ofenças pessoais, ative-me ao espetáculo.
Amilcar: obrigada! Leitura deliciosa! Acidez elegante. Grata pelo texto.
Heron: obrigada! Muito Sarcástico e na veia! Grata pelo texto.
Vasques: obrigada! Logo tu que fostes o alvo, desculpe-me!
Ida: seu texto é bastante pessoal. E tens todo o direito de escrevê-lo. Obrigada, também.
Janine: minha subjetividade está no texto. Não preciso tomar cafezinho com ninguém para que avaliem meu texto. De Toda forma, li seu texto com prazer, mas repito um crítico ficcional diz sim ao que veio, a crítica dele diz ao que veio.
Jefferson e Marisa: para vocês: O Coração de Zagreu.

O coração de Zagreu

Por Aline Valim
O Coração de Zagreu
Um ponto para reflexão: todos têm lugar ao sol, mas sombras pairam pelos palcos, sombras torturantes.
Um estado que permite que Valdir Dutra seja considerado um homem de teatro. Em que cadernos de cultura dão páginas inteiras às obras encenadas por ele, só pode mesmo rechaçar qualquer espírito crítico. Parece que existe um pacto, um não bate no outro e todos ficam vivos, ocupando pseudo-espaços. Por que um homem que faz um teatro tão absurdamente estapafúrdio nunca foi/é questionado? Falo de um questionamento estético, e, em público, porque tecer comentários jocosos, entre rodinhas de gênios da encenação, não vale, por que valeria?Ele distorce clássicos infantis. Agride ao público, mas agredir crianças parece ser permitido. Não se é permitido escrever uma crítica sobre um espetáculo de pessoas sérias, profissionais, que se dedicam ao teatro, estudam e procuram acertar. Muitas vezes isto não é o suficiente e se erra. Foi o que aconteceu com Simulacro de uma Solidão.Como ninguém fala nada? Este senhor é mil vezes mais nocivo ao teatro catarinense do que milhares de críticas, mesmo que todas estejam equivocadas, porque críticas equivocadas são passíveis de se rebater, de dialogar, de se discutir. Valdir Dutra destrói o imaginário infantil, afasta crianças do teatro, deturpa textos clássicos e subestima a inteligência das pequenas criaturas ávidas de saber.Desconfio que não exista uma única pessoa fazendo teatro em Santa Catarina que tenha assistido aos espetáculos dele na infância, se existir eu quero conhecê-la, pessoalmente, para dar um prêmio, por não ter desistido quando tudo apontava para a falência dos sentidos, para a nulidade de provocação e ao desrespeito pelo público, ao teatro, a Zagreu, o primeiro Dioniso.Como não sou leviana, nunca serei. Tive que colocar minha vida diante de um espetáculo deste senhor. Como se permite que tal coisa aconteça sem se dizer nada. Este povo só pode mesmo estar vivendo em concha, e olhem que eu fui acusada de estar em estado de concha.Escrevo para mostrar que o problema todo está sim na crítica. Não é possível que um estado que tenha tanto, mas tanto a rever no seu teatro se suscetibilize com um texto mostrando uma visão sobre um espetáculo. Meus lindos, meu deus! Por que todos ficam calados? Por que ninguém, mas ninguém mesmo, diz nada para este senhor que vive percorrendo o estado todo, com caça-níqueis de última categoria.Eu não entendo mesmo a lógica do que acontece neste estado. Faz bem lembrar “o velho” Nietzsche “Aqui estão esperanças; mas o que verão e ouvirão delas, se não tiverem experimentado brilho, ardor e auroras nas suas próprias almas?”.Seria muito, mas muito produtivo que toda esta sanha destinada a uma crítica fosse usada para arder auroras nas almas das pobres crianças que são abusadas, porque o que vi em cena, deste senhor, não merece análise, pois não é teatro, é abuso, abuso dos mais requintados. Pobres almas, quem as socorrerá!E assim continua o tal de Teatro Independente por Blumenau, Joinville, Criciúma, Rio do Sul, Florianópolis... Assolando as auroras de nossas crianças! E o coração de Zagreu, continua na perna de Zeus! Ah, o coração de Zagreu! Quem nos salvará! E segue pelo estado Os Três Porquinhos e o Lobo, Coelhinho Detetive, Joãozinho e Maria na Casa da Bruxa e As Aventuras do Saci Pererê. Repito, quem salvará nossas crianças? Professores da UDESC e outras universidades têm esse compromisso. Pois são educadores, não? Nossos clássicos infantis desvirtuados. E há quem reclame da minha virtualidade, sejam reais, por favor!

Aline Valim é poeta.
Por Lucian Chaussard

Santa Catarina: Estado de excelência


Tudo o que Jefferson Bittencourt e Marisa Naspolini provavelmente não queriam era que o texto publicado por eles no DC passasse a impressão de ressentimento do pobre artista criticado. Mas infelizmente foi justo isso o que aconteceu. Admito que há algo de saboroso e novelesco em dar de cara com um texto desse no Diário de sábado (20/09), ainda mais se tratando de crítica, classe artística local e internet. Mas nada impede que possamos nos deter uns minutinhos para tirar algumas conclusões sóbrias sobre o episódio.
De começo, acho que o texto já se apresenta criando uma complicação. Querer resguardar o crítico em conceitos tão breves de razão e ética parece criar uma armadilha onde justamente eles queriam armar seus argumentos. Colocar o crítico como pessoa de bem, construtora da sociedade, é matar sua presença, pois o que o crítico deve causar é instabilidade. Se há alguma contribuição à comunidade, é justamente com essa destruição e recolocação. E para ficar claro, isso não significa ataques e insultos. Normalmente a crítica que mais desestabiliza é a mais elegante.
Além disso, eles reclamam por responsabilidade dos críticos, no sentido de que eles devem responder por seus atos. Eu até compreendo, mesmo não achando justo no caso. Se há infantilidade por parte da pessoa que escolheu se esconder por trás de "Sarah Kane", isso não invalida seu gesto crítico. Não é com a pessoa física que os artistas vão dialogar, mas com o nome vinculado ao texto. Por isso, independente de "Sarah Kane" e "Aline Valim" serem ou não pseudônimos, essas identidades já garantem a possibilidade de diálogo e cobrança. Arrisco até dizer que um contato mais pessoal entre crítico e artista poderia acabar com o diálogo saudável que tanto se deseja. A conversa deve se dar no texto. De tapinhas nas costas os coqueteis em Florianópolis já estão fartos.
Por eliminação, portanto, chego ao ponto óbvio. É sobre o gesto crítico que os artistas deveriam ter atacado. E seria muito fácil, pois as duas críticas têm muitas limitações nos seus pressupostos argumentativos. É bem verdade que a peça da Marisa e do Jefferson tem problemas, mas eles agiram equivocadamente ao não refutar a argumentação de "Aline Valim" na crítica sobre o espetáculo. Pois além de escorregar em impressionismos, a crítica usa de maneira confusa ou facilmente refutável termos como dramaturgia e harmonia, centrais para seu texto. Para "Valim", a peça boa deve ter harmonia nos elementos. Isso é negar toda a modernidade artística e a evidência de que a peça de Jefferson Bittencourt trabalha através dá colagem de fragmentos. É uma falta de predisposição necessária ao trabalho crítico.
Portanto, veja bem, não seria justamente através de uma resposta qualificada por parte dos artistas - atacando os pressupostos da argumentação como fiz - que surgiria o tal diálogo que eles tanto defendem? E escrever um texto assim não foi fechar qualquer possibilidade para isso, além de ocasionar uma desconfiança sobre o que de fato eles querem da crítica?
É irônico, mas deve-se admitir também que foram essas críticas juvenis, escritas em blog ou no DC, que criaram algum movimento no circuito de teatro catarinense, coisa que a crítica responsável e embolorada não faz há tempos. Lembro-me no ano passado, que a cada estréia de espetáculo surgia em alguns a apreensão de se "Sarah Kane" estava na platéia. Isso só mostra a sede de diálogo crítico que há na produção local. Só faltam as partes pararem de bater cabeça.

Lucian Chaussard

A crítica e o pedigree

Por Marco Vasques


A Crítica e o Pedigree


“[...] seu anonimato é peça chave pra que as pessoas analisem seus argumentos sem criticá-la pessoalmente [...]”

(Jefferson Bittencourt in www.momento-critico.blogspot.com)


Vou me manifestar porque fui citado, desabonado e depreciado no artigo intitulado Sobre ética e crítica em tempos de internet, DC, 20/9/08. Para começar, quero dizer que sempre tive espaço em jornais e revistas especializadas de literatura. Tenho cinco livros publicados e um reconhecimento que rendeu críticas, nas páginas da Ilustrada (Folha de São Paulo), do Estadão e de O Globo, assinadas por conceituados críticos de literatura (Ítalo Moriconi e Silviano Santiago, por exemplo). Recebi críticas, publicadas em outros jornais de Santa Catarina e de fora do estado, de críticos que não conheço (e de cuja identidade, portanto, nem sequer posso ter certeza), mas os textos, somente eles, me interessaram, mesmo quando a crítica me era desfavorável. Dirigi alguns espetáculos teatrais e acompanho o teatro produzido em Santa Catarina de perto, pois é área de meu interesse. Sou colaborador do DC Cultura faz mais de seis anos, onde sempre assinei meus artigos, críticas e entrevistas. Fui colaborador de periódicos no Rio de Janeiro, São Paulo, Rio Grande do Sul e Paraná. Sou articulista de literatura em jornais impressos e em várias revistas eletrônicas. Não tenho nada a esconder, de maneira que posso me manifestar, emitir minhas opiniões, refletir sobre qualquer obra de arte que vejo sem subterfúgios. Assim me apresento porque parece ser imprescindível mostrar o pedigree; sem pedigree, não se pode ter voz.
Tenho consciência de que alimentei o imaginário de algumas pessoas em relação à criação de Sara Kane. Para que saber quem é Sara Kane? Pouco importa se Sara Kane é Marco Vasques ou qualquer outro apreciador ou espectador do teatro catarinense. O que importa, isto sim, é o que Sara Kane escreve. O importante é refletir sobre o que está sendo questionado e exposto. A discussão sobre autoria é uma discussão que vem se arrastando na pós-modernidade. Quem não lembra da exposição Desenhos de Antelo, do artista plástico Fernando Lindote? Lindote produz a obra de arte e Raul Antelo assina.
Aline Valim existe porque escreveu sobre quatro espetáculos no DC Cultura: De Malas Prontas, O Espantalho, Jardim das Delícias e Simulacro de uma Solidão. A crítica feita ao espetáculo Simulacro de uma Solidão, que tem como âncora a vida e obra da poeta carioca Ana Cristina Cesar, gerou a discussão. Acusam-me de “dupla identidade” sem parecer saber o que significa, juridicamente, ter dupla identidade e as implicações reais dessa acusação, como também parecem desconhecer que ter um pseudônimo não corresponde a ter “dupla identidade”.
Quando me citam, os autores do artigo pedem que eu faça com que Aline Valim se apresente aos dois – fique claro – porque querem conhecê-la para atestar o seu pedigree, porque não aceitaram a crítica ao seu espetáculo simplesmente por não conhecerem nem Aline nem seu currículo. Suponho que se Aline Valim quisesse conhecê-los, ela mesma os procuraria.
Cabe uma pergunta: por que ninguém quis conhecer Aline Valim quando os textos dela emitiam análises positivas acerca de outros espetáculos? Por que as únicas pessoas que se manifestaram contra Sara Kane foram as que tiveram, de alguma forma, apontamentos negativos em relação a suas montagens? Por quê?
Se alguém escolheu o pseudônimo de Sara, certamente sabia o motivo pelo qual fez essa opção. Assim como Anton Tchékhov sabia por que se mantinha oculto pelo pseudônimo Antocha Tchekonte, só para ficarmos no âmbito do teatro, porque são tantos os artistas que usaram e usam de pseudônimo na história da arte que seria fastidioso enumerá-los.
Assisti ao espetáculo Simulacro de uma Solidão duas vezes e, se não concordo com tudo que Aline Valim disse sobre a peça, posso afirmar que a obra de Ana Cristina Cesar e sua poesia não aparecem no palco. As grandes questões de sua poética estão longe de estar traduzidas em cena. Quem não conhece um único texto da poeta sai do espetáculo com a imagem de uma Ana infantilizada, transformada em um personagem sobre o qual o espectador não se sente instigado a procurar saber mais, o que é lamentável.
Contudo, a crítica sem pedigree, para eles, não tem substância nem valor, ao que parece. E como sou um escritor, um poeta, por certo que eles não vão levar minha análise em consideração, pois, supostamente, não tenho pedigree para falar sobre o trabalho deles, mas eles têm pedigree para analisar poemas e traduzi-los para o palco, mesmo, salvo engano, sem nunca terem escrito um único verso. Devo dizer que este é apenas um exercício dialético, uma vez que meu entendimento é o de que toda arte traz em si a poesia: dança, teatro, música, artes plásticas, etc. Quando bem orquestrados, resultam em grandes poemas que exalam poesia.
O que é um “crítico de peso”? Uma classificação como essa, no meu humílimo entendimento, denota uma atitude fascista. Questionar a procedência do autor e não o texto em si e ainda caluniar publicamente uma pessoa é postura ética? Discutir o anonimato de um texto é uma questiúncula. A crítica da crítica é importante, contanto que ela se restrinja ao campo da escritura, da análise e dos conceitos desenvolvidos na crítica. Escrever um artigo sobre ética e desqualificar o suposto autor de um texto em questões pessoais é um paradoxo, um contra-senso e não contribui em nada para o debate em questão: o debate estético.
Muitas pessoas, inclusive da classe teatral, me procuraram para prestar solidariedade e mostraram-se incrédulas com a postura dos artistas em questão, pois perderam o ponto da discussão, desfocando um debate que poderia ser profícuo ao teatro catarinense.
Em Santa Catarina, gerou-se o hábito de reclamar aos berros dos governantes, da falta de dinheiro para a cultura, da falta disso e daquilo. E, como escritor e ocupante de um cargo público de cultura, acho essas discussões salutares. No entanto, quando se discute estética, aí a coisa vai para o brejo. Eu gostaria que existissem inúmeras Alines Valins, independentemente de quem fossem. Cinema, literatura, artes plásticas, dança, enfim, toda expressão artística deveria contar com uma Aline Valim.
Tenho enorme admiração por Aline e pela sua coragem de dizer o que pensa, de provocar, de lembrar ao teatro catarinense que há muito a ser aperfeiçoado e que não há deuses. Eu me manifesto solidário a Aline Valim. Vida longa a Aline! Sara Kane ressuscitou! Vida longa a Sara! Eu, se fosse Aline, continuaria analisando o que se faz na arte dramática catarinense. Ela tem todo o direito de fazer esse exercício. Além disso, desconfio que o pior destino de uma obra de arte seja o silêncio, seja ele real ou virtual. Você publica um livro, monta uma peça teatral, faz uma exposição, os jornais noticiam e nada mais acontece. Ninguém comenta o evento, ninguém emite uma análise sequer. Isso é comum em Santa Catarina. E é triste. O crítico, portanto, é um ser generoso, e sua crítica aponta caminhos que o criador não percebe ou ignora.
E parece que o senhor Jefferson Bittencourt concorda com isso, pois assim se manifestou em comentário no blog de Sara Kane (geradora de “desconforto e ira entre os grupos e artistas devido à sua insistência no anonimato”), em março de 2007: “Olá Sara. Só passando pra te dizer que leio continuamente seu blog ... não há verdadeiramente um espaço de crítica teatral nessa cidade e você está bravamente criando um ... seu anonimato é peça chave pra que as pessoas analisem seus argumentos sem criticá-la pessoalmente (prática muito comum nessa cidade) ... torço pra que você continue sempre ... um grande abraço”.

Marco Vasques é escritor, poeta, crítico literário e bacharel em Filosofia pela Universidade Federal de Santa Catarina. Foi criador e editor do jornal de arte Capitu Traiu! Autor dos livros Cão no Claustro (Letradágua, Joinville, 2002), Harmonias do Inferno (edição do autor, Florianópolis, 2005), Elegias Urbanas (Bem-te-vi, Rio de Janeiro, 2005), Diálogos com a Literatura Brasileira – volume I (EdUFSC/Movimento, Florianópolis/POA, 2004) e Diálogos com a Literatura Brasileira – volume II (EdUFSC/Movimento, Florianópolis/POA, 2007), entre outros. Como diretor de teatro, montou Valsa no 6, de Nelson Rodrigues entre outros.

Escrituras inacabadas

Por Ida Mara Freire

Escrituras inacabadas

"Mire e veja: o importante e bonito do mundo, é isto: que as pessoas não estão sempre iguais, ainda não foram terminadas _ mas que elas vão sempre mudando. Afinam ou desafinam. Verdade maior". É o que a vida, a prosa de Guimarães Rosa, a linguagem teatral e a plenitude do corpo me ensinam. Na manhã do dia 19 de junho de 2008 anoto no caderno: Fui na pré-estréia da Marisa Naspolini, belo trabalho, uma inteireza, uma poesia, uma entrega, uma serenidade... maturidade _ Simulacro de uma solidão... Ana Cristina Cesar. Espetáculo produzido por Áprika Cooperativa de Arte e dirigido por Jefferson Bittencourt. Na platéia do Teatro do Sesc Prainha, estavam presentes familiares, amigos, estudantes, professores, produtores e artistas. Cada um com sua percepção. Olhares atentos à cenografia de Fernando Marés, que também assina o figurino juntamente com a atriz Marisa Naspolini. Ouvidos à escuta da trilha sonora conduzida por Jefferson Bittencourt. Uma mesa posta para dois, pratos, talheres, taças, um vinho, um convite para degustar os sentidos. O corpo receptivo para apreciação. Após a apresentação, a atriz e o diretor ouvem nossas impressões acerca da peça. Aspectos positivos e negativos foram ressaltados, assim como demarcados os pontos fortes e as fragilidades; comentários e crítica foram acolhidos, debatidos e, como em toda pré-estréia, a conversa continuou durante o coquetel.
A apreciação de um trabalho criativo pode ocorrer tanto durante o processo de criação quanto na apresentação do trabalho final. Nos dias atuais está cada vez mais delicado definir o fim de uma obra. E alguns artistas fazem suas proposições como work in progress, trabalho em andamento. Neste ensaio priorizo tecer meus comentários a respeito do processo de montagem da peça teatral Simulacro de uma solidão, com intuito de iluminar alguns momentos de imensa riqueza criativa ocultos à maior parte dos espectadores. Pontuo também que, diferente do conteúdo da crítica assinada por Aline Valim, publicada no DC Cultura no dia 13 de setembro de 2008 (que foca o espetáculo em si), meu texto se pautará numa reflexão oriunda da minha experiência como dançarina e pesquisadora acerca do processo criativo que pode ou não resultar num espetáculo bem acabado. Minha proposição é atentar para o corpo em cena como uma escritura inacabada.
É reconhecida, em Florianópolis, a experiência da atriz Marisa Naspolini na preparação corporal do ator. No seu trabalho como professora do curso de Artes Cênicas na Udesc, examina o tema "análise do movimento e a construção do personagem" e incita os estudantes a buscar o não-evidente, ao propor uma série de exercícios perceptivos. Em 2005, durante os meses de agosto e dezembro, Marisa Naspolini e eu nos propusemos a testemunhar o processo criativo uma da outra. Nesse trabalho nos encontrávamos semanalmente no Espaço do Corpo, Centro de Ciências da Educação da UFSC, e cada uma propunha atividade para outra. Observávamos uma e outra, trazíamos materiais e escrevíamos, líamos o que escrevíamos. Essas leituras e escrituras reportam a possibilidade de se perceber o corpo que dança se tornar um laboratório para experiências físicas, místicas e etc. Destarte, o corpo aberto para o fluxo da vida. O interesse no movimento e na linguagem nos levava e leva a indagar como o corpo que dança pode se inserir na escrita. Uma possível resposta está em investigar a diferença do corpo em cena. O corpo nunca é completamente natural ou textual. É possível pensar num corpo lido, terminado? A carne é escritura, uma escritura que nunca é lida por completo: está sempre aberta para ser lida, estudada, buscada, inventada. Isso sugere manter o corpo presente dentro do texto, pois toda realidade trabalha na carne, numa performance escrita que se move através das palavras para a dança.
O caminho do pensamento da atriz de levar Ana para o palco começou a ser percorrido na pesquisa em parcerias ora da dança ora do teatro, no ambiente acadêmico. A tristeza dos amigos do curso de
Letras, enlutados pelo falecimento da musa, inebriou inesperadamente a celebração de aniversário de Marisa Naspolini em 1983. De modo que a morte de Ana entrelaçou com a vida de Marisa e brotou a linguagem no seu corpo como texto. "Os mortais são aqueles que podem ter a experiência da morte como morte. O animal não o pode. Mas o animal tampouco pode falar. A relação essencial entre morte e linguagem surge como num relâmpago, mas permanece impensada. Ela pode, contudo, dar-nos um indício relativo ao modo como a essência da linguagem nos reivindica para si e nos mantém desta forma junto de si, no caso de a morte pertencer originariamente àquilo que nos reivindica", escreveu Martin Heidegger.
Em entrevista realizada em 14 de agosto de 2008, a atriz Marisa Naspolini falou-me sobre o seu projeto inicial, intitulado Mulheres sós, envolvendo sete mulheres, dentre elas Anaïs Nin, Clarice Lispector, Lya Luft, e por motivos de tempo-espaço, o seu orientador do Curso de Mestrado, Milton de Andrade, sugerira que ela escolhesse uma delas. A escolha foi Ana Cristina Cesar. Sua dissertação de mestrado intitulada, Confissões do corpo: composição cênica e diálogo poético com a literatura de Ana Cristina César, defendida em 2007, testemunha esse movimento. O processo de criação do monólogo Simulacro de uma solidão prima pela atmosfera confessional. No entanto, a atriz e o diretor abrem mão de uma leitura autobiográfica e de uma vertente psicológica. Essa escolha parece-me revelar um cuidado relevante ao se escrever estudos biográficos, ou seja, não se deve querer saber mais que a própria personagem sabia, nem impor-lhe nenhum outro destino derivado de observações aparentemente superiores, senão o que ela própria conscientemente tivera ou experimentara. Evitar deliberadamente tentar desvendar os truques do outro e desejar saber ou pensar descobrir mais do que este sobre si mesmo, ou ainda do que estava disposto a revelar.
A escolha musical de Simulacro remete à sonoridade de Billie Holliday. Tal musicalidade compõe a cena como uma personagem coadjuvante, sensação travessa, quando a música parece suplantar a personagem, nossos vividos, lembranças que não querem silenciar, competem por atenção. Gostaríamos de estar a sós, tal como Ana no vagão, mas a presença ausente de Billie atravessa, um diálogo quase indesejável irrompe em nossa alma. O ser humano sofre, escrevem Maria Martoccia e Javiera Gutiérrez no livro intitulado Corpos Frágeis, Mulheres Poderosas, em que Billie Holliday figura como uma das nove mulheres _ outras são Virginia Woolf, Frida Kahlo, Simone Weil _ que expressaram, em corpo e obra, o luminoso e o escuro, a incógnita do ser em plenitude vital e em sofrimento, em beleza, sabedoria e dor. Essas mulheres sofreram na existência as vicissitudes próprias do fato de terem um corpo como âmbito único onde tudo acontece. No entanto, a dor cria uma cotidianidade própria, de possibilidades e impossibilidades, de vantagens e desvantagens, cria partituras inacabadas.
"(...)Teremos que adiar a entrevista tenho espetáculo hoje à noite e minha voz não está muito boa...tenho que me cuidar..." Escuto a voz de Marisa na caixa de mensagem telefônica nos dias em que a peça estava em cartaz no Teatro da Ubro. O espetáculo provoca uma empatia com o público por revelar algo comum: um processo investigativo sobre uma coragem de criar. A coragem é necessária para que a mulher possa ser e vir a ser. Paradoxal, a escritura a respeito do eu do outro pode fazer doer em si. A dor do outro nos escapa quando tentamos apreendê-la como representação. Mas, surpreendentemente, o outro nos brinda com sua dor quando menos esperamos, um relâmpago essencial nos faz reconhecer nossa humanidade. A dor do ser expressada na linguagem do corpo revela uma escrita que dói pelas margens. Os seres humanos conseguem valor e dignidade pelas múltiplas decisões que tomam diariamente. Essas decisões exigem coragem. Contudo, um tipo de coragem que não se expresse em desmandos de violência e que não dependa de afirmar o poder egocêntrico sobre as outras pessoas, mas uma nova forma de coragem corporal. O corpo, não para o desenvolvimento exagerado de músculos, mas para o cultivo da sensibilidade. O processo criativo do espetáculo Simulacro..., no qual a atriz Marisa Naspolini e seu diretor buscaram enredar uma história de amor presente nas correspondências, diários, cartas e postais, tem como fim não o suicídio, mas a possibilidade de um recomeço. Tal qual a potência de um poema no gesto da mão que dança ao escrevê-lo, a vida como uma página em aberto, nova, e o corpo em sua plenitude, como o de Ana Cristina Cesar, desvelam escrituras inacabadas...


Ida Mara Freira, professora do Centro de Ciências da Educação da UFSC

Quem pode se esconde atrás de sua subjetividade?

Por Janine Koneski de Abreu


Quem pode se esconde atrás de sua subjetividade?



Ao escrever um texto crítico, mesmo sem revelar seu nome, a pessoa que o faz se mostra. Não há possibilidade do anonimato de sua subjetividade. Preferências,entendimentos, gostos, desgostos, paixões, ódios, histórias de vida... sempre estão espreitando à sombra de quem escreve. É totalmente plausível enxergar tendências ideológicas quando alguém se põe a fazer a análise crítica de algo. Na realidade está tudo ali, mas não o nome... Por que o anonimato, se é possível ver o crítico em uma análise que expõe suas entranhas? Com um pouco de paciência e alguma perseverança é possível ver a verdadeira identidade de Aline Valim se delinear pelos traços de suas críticas. Além de reconhecê-la através de suas tendências em suas análises, também é possível identificar suas falas, algumas delas provavelmente ditas altas e em bom tom.
Pois, crítica de teatro subjetiva, tal qual está exposta na imprensa brasileira na atualidade a partir da década de 1940, e que tem como respeitável mestre Décio de Almeida Prado, revela a face de quem a escreve. Ao encarar o objeto artístico, o público é impregnado de sensações e reage aos estímulos recebidos, da mesma forma o faz o crítico em uma clara relação impressionista com a obra. A elaboração que cada espectador fará do que viu em cena se relaciona com suas possibilidades de compreensão, nível cultural, meio em que vive, entre outras variantes de sua subjetividade. E, embora o crítico seja alguém especializado no assunto, ele se utiliza do mesmo instrumento para olhar a expressão artística: sua subjetividade. "A minha personalidade, as minhas simpatias e antipatias, o meu repertório ideal e a minha encenação ideal não se refletiram no processo crítico? Mentiria se dissesse que não. Buscava a objetividade, fugia quanto me era possível de implicâncias, de preconceitos humanos e artísticos, mas sabendo que no fundo, bem no fundo, as minhas opções não escapavam ao pessoal", escreveu Almeida Prado, em 1987.
Como movimento artístico, o impressionismo nasceu na França nas últimas duas décadas do século 19 e tentou utilizar uma representação mais verossímil da cor e do tom, possuindo em Monet e Renoir alguns de seus mais proeminentes representantes nas artes plásticas. Quanto ao uso do termo para designar uma corrente crítica, encontramos em Ferdinand Brutinetière um primeiro exemplo, em 1879, no ensaio chamado L'impressionisme dans le roman. Mas, foram três nomes que deram contornos mais claros à crítica impressionista: Anatole France, Jules Lemaître e Remy de Gourmont. A intenção deles era restringir a análise crítica ao efeito que a obra tem sobre o observador/leitor, fazendo com que o gosto de cada pessoa fosse o responsável pelo juízo a ser feito em relação à obra.
É importante ressaltar que o espaço da crítica subjetiva/impressionista é principalmente os meios de comunicação, aí também é válido citar os instrumentos virtuais, já que a crítica realizada nos meios acadêmicos se utiliza das mais variadas correntes de pensamento. "A crítica de teatro tinha que ser impressionista, porque ela é uma resposta imediata. Vem um estímulo e você reage... Eu reajo como público, como o público reage. Quer dizer, eu vejo e penso e faço um esforço para dizer aquilo em que eu estou pensando. A crítica jornalística não pode ser outra coisa, eu acho", escreveu Almeida Prado em O Percevejo (pág. 73)
O crítico, assim como os artistas que compõem uma obra cênica, cumpre um papel. E, como cada um dos envolvidos nesta trama teatral há possibilidade de toda a sorte de acertos e de fenomenais equívocos. Mas, como em qualquer diálogo salutar que pretenda se manter desta forma _ e a crítica é a revelação do olhar de um espectador sobre o objeto artístico _ é necessário que as armas sejam colocadas sobre a mesa. No espetáculo não há o que esconder além do urdimento. Texto, atores, direção, cenografia e figurino estão expostos ao público, seja ele especializado ou não. É justo que em contrapartida os criticados possam ver com quais instrumentos estão sendo analisados. Para que se mantenha uma relação de confiabilidade, pois creio que qualquer crítico almeje ser lido e ouvido, é necessário clareza e seriedade. E, pedir que o dono da subjetividade exposta se revele não seria demais. Afinal, se crê que a relação crítico/criticado e todos os resultados obtidos desta conversa teatral sejam da maior importância para os envolvidos.
O pedido de aparição não é invalidar o que vê a pessoa que se esconde atrás de suas críticas, muito menos pedir que apenas acadêmicos com inúmeras titulações teçam análises. Até porque a possibilidade de visões sobre o teatro é tão vasta quanto a quantidade de pessoas que se colocou a observá-lo e está apto a escrever sobre o assunto quem gosta de teatro e quem tem vontade de mostrar suas análises. Assistir teatro, discutir teatro é real e necessário. Um crítico ficcional não diz ao que veio, ainda mais se vivemos em um Estado onde a produção teatral se ressente da falta de diálogo crítico. Mas, a discussão em torno da aparição de Aline Valim resultou, pelo menos, em um excelente debate em torno do esquecido teatro catarinense.


Janine Koneski de Abreu, graduada em Jornalismo, especialista e mestre em Teatro, autora da dissertação O Diabo são Os Outros e A Relação de Crítico e Criticado em Três Momentos Históricos do Teatro Brasileiro

Por uma crítica mais careta (aluno da UDESC)

Por Daniel Olivetto


Por uma crítica mais careta

O artigo escrito pelo professor Heron Moura, Onde está Aline?, publicado no último sábado no DC Cultura, dá continuidade às discussões sobre o anonimato de Aline Valim na Ilha, e eu gostaria de abrir um pouco mais a conversa sobre alguns aspectos, em especial no que diz respeito às relações entre anonimato, ficção e virtualidade, três coisas que me parecem muito distintas. Em primeiro lugar, concordo que a personagem Aline Valim, nossa crítica virtual, não seja um robô, portanto, é um ser que responde (ou deveria responder) por suas críticas. Honestamente, creio que um anônimo não responde por absolutamente nada, pois não se sabe que compromisso um anônimo tem quando escreve. E não se trata de conhecer ou não a procedência de um texto para poder discutir com suas idéias. Posso discutir com as idéias da bíblia sem saber quem a escreveu de verdade, não? No entanto, não saber quem é Aline Valim nos impede de discutir de outras maneiras suas "críticas", pois não sabemos de que lugar Aline nos fala. Não falo de ter ou não um pedigree, e sim de saber quem é o ser humano com quem converso, já que estamos lendo um jornal, material de grande compromisso com o real.
Pode parecer "careta", mas se não sei quem escreve, para quem eu respondo? Com quem eu converso? Pode ser mesmo "careta" em tempos de internet acreditar em identidade, mas se não sei quem escreve, não faço idéia do que o autor quer com um texto, e creio que a noção de responsabilidade se baseia nisso: saber quem assume o que é dito. Sobre o que comenta Heron Moura a respeito do nosso dia-a-dia virtual, realmente estamos acostumados diariamente a responder diversos e-mails, sim, e a lidar com diversas pessoa@provedor.com.br. No entanto me parece muito distinto responder um e-mail para barbaraheliodora@provedortal.com.br e para alinevalim@provedortal.com.br, pois, eu sei quem é Barbara e não sei quem é Aline. Não é diferente responder virtualmente para um conhecido e para alguém que não faço idéia de quem seja?
Certa vez conversei virtualmente com Sara Kane em seu fotolog, após um comentário seu sobre um espetáculo que dirigi, Hagënbeck Ltda, referente a apresentação no Sesc Prainha em fevereiro de 2007. Não chamo a escrita de Sara Kane de crítica, e sim de comentário, pois creio que uma crítica não é apenas um texto em que alguém fala sobre suas impressões e adjetivos a respeito de uma obra, e sim um texto em que podemos refletir sobre a obra, um texto que fundamente suas idéias e impressões. Um texto crítico propõe um estudo mais especializado do que um comentário mais simples de blog. Ambos são importantes e abrem discussões, mas são distintos. Perguntei a Sara Kane porque não tinha ficado para o bate-papo ocorrido logo após a apresentação, momento em que poderíamos discutir presencialmente diversos temas, problemas do espetáculo, e o que mais fosse pertinente ali, logo após a sessão. Mas, tudo bem, a discussão se deu por fotolog e foi até prazerosa. Sara Kane não precisa de pedigree, afinal qualquer um pode ter um blog e escrever o que quiser. Mas não seria necessário saber de que lugar cada um fala? Quando minha mãe comenta sobre uma peça minha, ela sempre começa dizendo: "Olha, eu sou leiga, mas eu acho assim, né?...". Mamãe, que não tem pedigree de crítica, situa o lugar de onde fala e seus comentários sempre me ajudam muito. Comentário é comentário, e pode contribuir muito, sempre. Mas, quando se chama um texto de crítica, supomos que vamos ler um texto que abre uma discussão mais ampla e que não se baseia no "eu acho assim". E esperamos muito menos que uma crítica pareça um texto-veredicto, que encerra ali o próprio ato reflexivo. Mas Sara escreve comentários, e não críticas, e por um tempo até achei seu anonimato interessante, embora lhe desse menos credibilidade que dou a qualquer pessoa com ou sem pedigree, pois como não faço idéia de quem seja Sara Kane, não sei se suas opiniões não passam de ironia. Quando minha mãe fala sobre teatro, eu sei de onde ela fala. Quando Edelcio
Mostaço fala sobre teatro, eu sei de que lugar ele fala, e mesmo discordando muitas vezes dele, suas críticas se fundamentam, são escritas com compromisso de quem domina o assunto e me deixam este espaço para discordar e conversar a partir de seu texto. Será que é tão "careta" assim querer saber com quem estou conversando? O que ocorre com Aline Valim, nossa crítica que já chega fazendo sucesso na Ilha, é que esta ocupa um espaço privilegiado num veículo oficial, como comentam Jefferson Bittencourt e Marisa Naspolini em seu artigo Sobre ética e crítica em tempos e internet (publicado no DC Cultura de 20 de setembro de 2008). E neste espaço privilegiado se discute virtualmente o que os artistas fazem presencialmente, o que gera um atrito bastante compreensível.
O teatro é uma arte presencial, que ocorre ali, frente a frente, e que coloca no mesmo território espaço-temporal a ficção e a realidade. No entanto, a respeito do que comenta Heron Moura (autor que eu sei que existe, pois, paranoicamente, corri para o site da UFSC para saber se estaria respondendo a um anônimo ou não), não é Hamlet quem desce do palco para cumprimentar o público. Hamlet é um personagem, uma criação artística, e quem desce à platéia é um ator. Sara Kane e Aline Valim, que são personagens de outro gênero criativo, não vão ao camarim de Hamlet dizer o que acharam, logo, assim como Hamlet, não existem como sujeitos. Honestamente, não penso que seja necessário um pedigree para escrever crítica. Eu já exercitei escrever algumas críticas, mas nunca tentei publicá-las, pois achava que não ajudavam a discutir muita coisa, e deixei de publicá-las por este motivo e não por não ter pedigree. E não tenho mesmo, mas, poderia publicá-las em meu blog, deixando claro o lugar de onde falo: "Sou ator, tenho 28 anos, etc e tal, e deste lugar olho a obra tal assim".
Creio que para escrever crítica seja necessário conhecer o ambiente da obra que se critica, com ou sem "diploma de crítico" (aliás, diploma de crítico não existe!). Penso que é preciso assumir sua opinião, discuti-la de maneira generosa e responsável, e fundamentar o uso de "achismos" crônicos como "cometer deslizes infantis", como comenta Aline Valim em sua crítica sobre o espetáculo Simulacro de uma Solidão (publicada no DC). E fundamentar não significa defender uma tese, citar um cânone e fechar o parágrafo. No caso desta crítica de Aline talvez fosse importante fundamentar apenas justificando o que significa uma atriz "cometer deslizes infantis", ou dizer que o "jogo com o público não acontece". Como se sabe que uma peça chega ou não ao público? Aline Valim é "o público"? O que significa "o jogo não acontecer"? Sabemos que o espaço para crítica no jornais é muito limitado e às vezes com uma lauda e meia não se consegue fundamentar tudo, então, que tal ser menos impactante? Quando uma crítica apresenta este tipo de "achismo" radical _ e fechado em si mesmo _ não se tem muito como discutir. Se eu chego chutando a porta, ninguém vai me receber bem. Não foi assim que mamãe ensinou? Um crítico não precisa passar a mãozinha na cabeça de ninguém, nem dizer tudo cheio de cautelas, mas deveria fundamentar o que acha para que possamos discordar, pois um crítico não é "o público", e sim "um público". E ser generoso não é ser bonzinho, é ser educado, o que me parece o mínimo pra abrir uma conversa. Além de chutar a porta Aline Valim saiu correndo, porque não sabemos quem ela é.
Quando leio uma crítica que diz que num espetáculo se "comete deslizes infantis", sinceramente, o que me resta é fechar o caderno e pular para os classificados. Além de pouco educado, me parece covarde essa dimensão do anonimato. Talvez seja "careta" pensar assim, mas em tempos de tantas falas sobre a virtualidade que engole as relações humanas, opto pela caretice de tentar conversar com pessoas reais. Como já diria mamãe: "Eu acho assim, né?".


Daniel Olivetto, ator da Cia. Experimentus Teatrais e graduando em Artes Cênicas pelo Ceart/Udesc.

Eu Sou Aline, Valeu?

Por Amilcar Neves

Eu Sou Aline, Valeu?


A cena artística local ferveu nestes últimos dias, desde que entrou em cena uma personagem que ninguém conseguia ver, tocar, cheirar, apalpar; com quem não se podia marcar um encontro, tomar juntos uma cerveja (embora seu gosto tenda mais para o vinho, a julgar por seus juízos), pegar na mão, dar uns amassos.
Aline Valim, a personagem em questão, pulou dos palcos direto para a platéia. Não perde um espetáculo de teatro e - ousadia suprema! - mete-se a dissecar cada lance da cena dramática ilhoa. E o faz por escrito, ainda por cima - o que pode ser imperdoável.
Fantasmal, Aline passou a ser lida por olhos superiores, condescendentes, desses que miram o mundo de cima para baixo. Claro, diziam tais olhos, ela está certa: afinal, meu espetáculo é maravilhoso, minha atuação é magistral, meu teatro é obra (obra-prima) de mestre; ela só faz reconhecer de público tais atributos, de per si já notórios.
Um dia, porém, Aline não gostou muito do que viu, e disse-o com todas as letras, nomes e sobrenomes; destacou o que encontrou de bom (na sua opinião), mas negou-se a esconder nos bastidores o que lhe pareceu (na sua opinião), ao invés de falho, incompleto. Afinal, ao espectador não interessam os bastidores, mas a cena. E Aline exercia o suposto direito inalienável de opinião.
Quem antes aplaudiu por escrito a intervenção crítica de Aline Valim no cenário do teatro local, homenageando-a porque "seu anonimato é peça chave pra que as pessoas analisem seus argumentos sem criticá-la pessoalmente", um ano e meio depois, em artigo recente aqui no DC Cultura, passou a... criticá-la pessoalmente. E a exigir, em altos brados, não só a identidade como as credenciais da moça: Quem és tu, afinal, para vires assim ditar estética e dramaturgia? Isso não é ético! Isso de falar sem dar a cara a bater! Pois bem, deixa que eu respondo essa.
A pressão é insuportável, não há como resistir. Nos "bons tempos", a prisão ilegal, a tortura e o poder da força resolviam questões como esta num instante. Hoje demora um pouquinho mais: a intimidação para calar a voz destoante, que não se afina com a nossa ou que dela discorda, se faz pelo grito: eu grito e te calo, insolente! Sim, confesso, enfim: tenho muitos amigos que vão ao teatro e me contam o que vêem. E então eu escrevo o que eles me contam. Aline Valim sou eu, valeu?

Aliás: isto muda alguma coisa?

Amilcar Neves, escritor

Onde está Aline?

Por Heron Moura

Onde está Aline?

Eu também não conheço Aline Alvim. Não sei se ela é real ou virtual. Contudo, contrariamente ao que defendem os autores do artigo “Sobre ética e crítica em tempos de internet” (publicado no DC Cultura, de 20 de setembro de 2008), acho que Aline Alvim tem direito à existência. Aline Alvim publicou, neste suplemento cultural, algumas críticas sobre peças teatrais produzidas por grupos catarinenses. Mas ninguém nunca viu Aline, ela não dá aulas na UFSC ou na UDESC, ela não foi vista na Lagoa, Aline não existe.
Os autores do artigo citado reclamam que não sabem “a procedência” das críticas teatrais, e por isso questionam a legitimidade das leituras críticas de Aline (vamos chamá-la assim, com intimidade, já que parece que ela não existe mesmo). Eu esperaria um pouco mais de fair play de atores e diretores de teatro. Eles inventam e encarnam seres imaginários. Eles dão corpo a vidas virtuais. Se aceitamos personagens em busca de um autor, por que não aceitar um personagem em busca de peças para criticar? Como separar o real do irreal no mundo fantástico do teatro?
A cobrança da procedência e das credenciais de Aline é o equivalente artístico do bordão social “sabe com quem está falando?”. Os autores do artigo, talvez irrefletidamente, cobram um status social de quem se dirige a eles, na forma de crítica de sua produção artística. Mas então para fazer crítica é preciso antes pegar um diploma (imaginário) de crítico? Quem, nessa ilha, está habilitado a fazer crítica teatral? Professores da UFSC e da UDESC? Unisul pode?Onde está Aline, que não responde? Por trás de Aline há uma pessoa real. Alguém escreveu os textos. Não foi um robô. Aline não é um robô. Mas não seria maravilhoso se houvesse nessa Ilha da Magia um robô super-avançado, feito ali no CTC da UFSC, que entrasse disfarçado nas exibições de teatro e escrevesse críticas depois? Isso não seria amar o teatro ao extremo?
Aline é anônima, não é virtual. Seria antiético se ela usasse o anonimato para difamar pessoas. Mas ela apenas escreveu críticas teatrais. Os artistas envolvidos podem, é claro, se defender, mas não é isso que o artigo “Sobre ética e crítica em tempos de internet” faz. Esse artigo em nenhum momento debate a proposta artística de suas produções, o conteúdo estético das soluções adotadas nas obras. Aline provoca o debate estético, mas perguntam antes se ela existe. Já pensou se a gente perguntasse antes a Hamlet se ele existe para então ouvir o que ele tem a dizer? O teatro vive da crença na ficção.
Eu daria dois argumentos para mostrar que a ficção é essencial para a arte. Mais precisamente, uma mescla de ficção e realidade, que é o que Aline faz (supondo que ela não seja o robô do CTC).Keith Devlin, no livro O gene da Matemática, (Record, 2006), tradução de Sergio Rego, argumenta que o ser humano desenvolveu, ao longo da evolução da espécie, um segundo cérebro. Esse segundo cérebro recebe informação não do mundo externo, mas do primeiro cérebro. Ou seja, ao passo que o primeiro cérebro está diretamente conectado ao mundo exterior, o segundo cérebro processa símbolos, representações mentais. Ele vive virtualmente, a partir de estímulos internos à mente. A vida dos símbolos nos deu muita coisa: os conceitos, a linguagem, a matemática e a arte. Mas os símbolos só existem na nossa mente. Desde o início, somos sensíveis tanto ao real quanto ao fictício. Aline, ao que parece, é um símbolo – ela vive no segundo cérebro. Mas não dá para extirpar o cérebro que imagina e simboliza. Assim como não dá para negar a parte do humano que se conecta ao mundo. Onde está Aline? Outro argumento a favor da fusão entre real e irreal na arte é a interpretação de metáforas. Examinem a conhecida metáfora de João Cabral de Melo Neto: “Um galo sozinho não tece uma manhã”. Esse verso nos situa numa ponte entre o real e o irreal. Ele nos oferece um mundo em que galos são aranhas, e em que manhãs são teias. No entanto, não somos jogados de chofre num mundo imaginário, pois o galo do poema é ainda o galo que canta de manhã. A realidade, subvertida, retorna no poema. Há uma troca de significados entre o galo e a manhã, entre a aranha e a luz. Hamlet também pode descer do palco e apertar a nossa mão.
Por tudo isso, sou a favor da existência de Aline. Não sei quem é, se mora no Campeche ou na Trindade. Mas ela vai ao teatro e discute em público o que vê. Não é pouco. Eu sempre tive a impressão de que nossa ilha é virtual. Sendo assim, a arte que se faz nela também é. Por que esquentar a cabeça se seres virtuais começam agora a opinar sobre a cultura na ilha? Isso é ótimo! O pior para um artista não é ser criticado, ainda que por seres imaginários. O pior para um artista é se exibir para as paredes, e ouvir como resposta apenas um silêncio bem real.
Heron Moura, poeta e professor de Lingüística da Universidade Federal de Santa Catarina

Resposta à critica ( feita pelos artistas)

Por Marisa Naspolini e Jefferson Bittencourt

Sobre ética e crítica em tempos de internet

Para que um texto crítico tenha validade
e cumpra seu papel social é fundamental conhecer sua procedência

O sujeito ético consiste, fundamentalmente, em um ser racional e consciente (sabe o que faz), livre (decide e escolhe o que faz) e responsável (responde pelo que faz). Assim, podemos pensar que uma ação é ética se for consciente, livre e responsável. Desde que surgiu, a internet tem se deparado com problemas éticos no que diz respeito aos direitos de autor, aos plágios, aos crimes financeiros, roubos de dados, disseminação de vírus, falsidade ideológica e outros, a maioria deles facilitado pelo anonimato que a rede proporciona, livrando o autor das responsabilidades sobre seus atos.
A produção teatral catarinense vem se deparando, desde o ano de 2007, com uma situação ética muito particular: o surgimento de críticos teatrais em blogs que funcionam exclusivamente através do anonimato. Foi assim com a aparição de Sarah Kane, uma jovem que usou o nome da escritora inglesa, morta em 1999, para discorrer sobre a produção local. Durante quase um ano, Sarah escreveu em seu blog (momento-critico.blogspot.com) sobre as principais montagens locais, gerando desconforto e ira entre os grupos e artistas devido à sua insistência no anonimato, contrariando um princípio básico e caro à crítica (seja ela teatral, musical ou literária): a crítica traz - ou deveria trazer - a perspectiva de um diálogo fértil entre criador e crítico, e entre crítico e leitor, e, portanto, prescinde de uma relação clara e transparente entre ambas as partes.

Para que um texto crítico tenha validade e cumpra seu papel social é fundamental conhecer sua procedência, saber a quem devemos nos remeter enquanto leitores, que histórico traz essa pessoa a quem creditamos confiança na condução de nosso olhar estético. Isso era impossível no caso de Sarah Kane, que permaneceu no anonimato até que uma noite, após uns copos a mais em uma mesa de bar, um escritor local admitiu, entre amigos, ser ele a mente por trás do nome da misteriosa e evasiva "crítica" local.
O Estado de Santa Catarina já contou com críticos de peso no jornalismo diário, como foi o caso de Eliane Lisboa (pesquisadora e dramaturgista, ex-professora do Centro de Artes da Udesc), no Diário Catarinense, e Edélcio Mostaço (crítico renomado do jornal Folha de S.Paulo, nos anos 1980, e atual professor do Centro de Artes da Udesc), no jornal A Notícia. No entanto, esta tem sido uma carência reconhecida no meio teatral catarinense. Falta-nos a presença permanente de um profissional que domine um instrumental teórico que poucos espectadores possuem, possibilitando a análise da obra cênica através de um olhar treinado e habilitado a ver o que o olho comum não enxerga. De acordo com Sebastião Milaré, crítico e teórico reconhecido nacionalmente, "o crítico é um especialista e não um espectador privilegiado. Vê o espetáculo como um pensamento transformado em imagens, sons, movimentos, luzes, e discute esse pensamento".
Em julho de 2008, surgiu uma nova "crítica" na cena local. Assina como Aline Valim, e foi apresentada virtualmente ao meio teatral pelo mesmo escritor-Sarah Kane, que recomendou aos amigos que a lessem e prestigiassem. Desde então, Aline vem tecendo comentários pessoais em seu blog acerca das produções teatrais locais. Recém-chegada à cidade, Aline escreve sobre grupos e artistas com intimidade, inclusive cita produções realizadas há mais de cinco anos, e o mistério de sua existência ganha proporções novelescas quando não se encontra um único integrante do meio teatral que a conheça pessoalmente.
Recentemente, Aline Valim passou a assinar críticas no caderno de Cultura do Diário Catarinense, opinando sobre como se deve proceder, ou não, na montagem de um espetáculo (entre os trabalhos analisados recentemente, encontram-se O Espantalho, De Malas Prontas, Jardim das Delícias e Simulacro de uma solidão). Aline Valim, que se apresenta como poeta e com o livro Sittah no prelo, age como crítica, mas não passa de uma espectadora privilegiada. Duplamente privilegiada, pois conquistou um espaço na mídia escrita onde expõe suas opiniões com o peso de uma especialista. Aline Valim é um nome fictício. Ninguém a conhece, não dispõe de telefone, só se comunica por e-mail, não dá entrevistas nem marca encontros, pois está sempre viajando (Paris, Londres...), e, ainda assim, consegue acompanhar a farta produção local.
A crítica Bárbara Heliodora comenta que para ser um bom crítico é preciso, acima de tudo, adorar teatro. Em seguida, é necessário procurar conhecer o máximo que puder sobre autores e escolas de interpretação e ir muito ao teatro. Ela insiste que o crítico não deve ser paternalista. "Passar a mão na cabeça não é positivo para o teatro, pelo contrário", afirma a polêmica crítica, conhecida pela severidade arrasadora, que causa temor no meio teatral.
Milaré reafirma a importância do respaldo de intelectuais conhecedores da arte, capacitados à análise e discussão do fenômeno estético. A crítica teria, para ele, "uma função analítica e organizadora das diferentes correntes de pensamento que incidem na produção dramática".
Voltemos, então, à questão ética, ao sujeito que responde por seus atos. O DC Cultura é um caderno de idéias, valorizado pela presença constante de intelectuais e formadores de opinião reconhecidos na cena catarinense, pessoas reais com quem se pode conversar e trocar idéias, de quem se pode, inclusive, discordar. Aline Valim não é real. Trata-se de uma invenção virtual, uma ficção criada por alguém que não ousa responsabilizar-se por seus atos, por incompetência ou covardia. Isto é um desrespeito com o público e um desserviço ao teatro.
O exercício da crítica é um exercício de cidadania, baseado na troca, e por isso deve ser feito com responsabilidade. E o primeiro ato de cidadania é assumir sua própria identidade. Simples, não? E uma vez que se trata de uma questão de interesse coletivo, sugerimos ao senhor Marco Vasques, escritor e funcionário da Secretaria de Cultura, Esporte e Turismo de Santa Catarina, que use sua experiência em dupla identidade, como mentor de Sarah Kane, para convencer sua amiga Aline Valim (até o momento, Marco Vasques é o único integrante do meio artístico a admitir que a conhece pessoalmente) a se revelar publicamente, dando, assim, uma contribuição verdadeiramente relevante ao teatro local.

Jefferson Bittencourt é músico e diretor teatral, dirige o grupo Cantus Firmus, a Persona Cia. de Teatro, a Trilogia Lugosi e é sócio da Vinil Filmes, mantém em Florianópolis a Camarim Escola de Arte.
Marisa Naspolini é atriz, produtora e professora de teatro no Centro de Artes da Udesc, dirige a Áprika Cooperativa de Arte e é presidente da Gesto - Associação de Produtores Teatrais da Grande Florianópolis

Simulacro de uma solidão

Por Aline Valim

O espetáculo Simulacro de uma solidão aborda a vida e a obra da poeta Ana Cristina Cesar

Poetas como Ana Cristina Cesar, Torquarto Neto, Paulo Ramos Filho, Francisco Alvim e Paulo Leminski são sobreviventes de uma geração em que a poesia ganha outra dimensão. A poesia não é mais um ente deslocado da vida. A vida passa a ser gerida como ato poético. O comportamento do poeta influi na sua produção, isto é, o corpo é pensamento. Seguindo esta linha de raciocínio pode-se perceber a coerência existente entre estes poetas chamados de “marginais”. Esta geração combatia “justamente o objetivismo da geração antecedente tanto na política quanto na estética”.
O espetáculo Simulacro de uma solidão, da Áprika Cooperativa de Arte, que esteve em cartaz recentemente no Teatro da UBRO, trata da obra e da vida de Ana Cristina Cesar e é fiel à construção conceitual poética por ela estruturada. Dirigido por Jefferson Bittencourt e com Marisa Naspolini em cena, o universo do monólogo tenta compor variações existências da poeta carioca, que se atirou da janela de seu apartamento em 1983, a partir de textos retirados de sua obra.
Uma mulher só num vagão de trem espera alguém/algo que a tire da angústia e da solidão. Ela inventa fantasias, fugas, lugares de conforto, realidades, espelhos, o outro e a si mesma. A mesa posta para duas pessoas, vinho servido para duas pessoas. O duplo: o fantasma. Como toda montagem baseada em relatos, diários, cartas e poemas, o problema quase sempre surge na composição da dramaturgia. Com o Simulacro de uma solidão não é diferente. O jogo com o público não acontece e a dramaturgia do espetáculo não se revela.
A personagem (supostamente a própria Ana Cristina Cesar) tenta estabelecer uma relação dramatúrgica com os elementos em cena, mas não consegue. A trilha sonora, por exemplo, que vai de Billie Holliday a Cartola concorre com o espetáculo. A disputa acontece por não haver justaposição entre a cena e a música. O cenário, embora de uma beleza plástica extremada, é preciso ressaltar que Bittencourt é um poeta dos palcos, não revela sua função cênica.
A atriz Marisa Naspolini peca em alguns momentos. O uso do papel, um dos instrumentos de trabalho do poeta, se esfacela. Há uma cena, no manuseio do papel, que escapa ao esfacelamento. A personagem rasga uma folha e a sobrepõe próximo as orelhas. Contudo, a cena toma outro tom e perde a tensão criada. A alusão feita ao suicídio de Ana precisa ser trabalhada e a escolha pela personagem infantil para tratar do tema não nos parece a mais apropriada ao espetáculo. Em muitos momentos os textos de Ana perdem a força e a sua poesia vem ao público com pouco impacto. Existe uma caracterização, um falseamento na fala da personagem.
Marisa, professora do Departamento de Cênicas da UDESC, comete deslizes infantis. No momento em que ela manuseia os talheres fica evidente a falta de tempo e composição cênica, o que poderia ser uma cena altamente trágica e simbólica, pois metaforiza a queda, e foi numa queda que Ana se desencontrou, se torna uma cena fugaz, banal, sem força dramática. Quando a personagem diz “nem tudo é um naufrágio na vida, mas um dia eu me afogo no álcool.” Perdemos a noção exata da ironia e da tensão contida no verso.
Simulacro de uma solidão precisa ser revisto. No espetáculo reside o germe para seu aprimoramento. No entanto, a dramaturgia, que se faz ausente durante quase todo espetáculo, irrompe na cena em que a personagem dança consigo, simulando, com sua indumentária, a presença do outro. Necessário revelar que o figurino (Fernando Marés e Marisa Naspolini) é preciso e conduz a metáfora do outro-imaginário. No momento em que a personagem dança com o outro-imaginário - ela toda de preto, o outro-imaginário de chapéu e sobretudo - a dramaturgia do espetáculo se concretiza por alguns minutos. A espera, a solidão, a angústia, a dor, enfim, surgem neste momento de pura poesia, onde finalmente luz, som, corpo, movimento se integram. E é isto, explorar poesia em cena exige que o espetáculo seja um poema, um bom poema.
O que temos, no momento, é, digamos assim, “eu sei fazer”. Olha como eu sei dirigir? Olha como eu sei atuar? Olha como eu sei fazer um cenário? Olha como eu conheço de música? Mas o todo não se completa. Confesso-me uma apaixonada pelo trabalho do diretor e músico Jefferson Bittencourt (Nem mesmo a chuva tem mãos tão pequenas, O coração delator, Outside, Castelo de cartas...), mas desta vez ele perdeu a direção. Há, evidentemente, tempo para reelaborar o espetáculo, para tanto é preciso priorizar a poesia de Ana Cristina César. E como diria o crítico e poeta Willian Hazlitt: “A poesia é a linguagem da imaginação e das paixões. Relaciona-se com tudo que causa prazer imediato, ou dor,à mente humana. Atinge a intimidade e a atividade dos homens: porque apenas o que os afeta da maneira mais geral e ininteligível pode ser um tema de poesia. A poesia é a linguagem universal que o coração liga à natureza e si próprio. Aquele que despreza a poesia não pode ter muito respeito a si próprio, nem por nada.”
O que falta para Simulacro de uma solidão é usar todos os elementos teatrais de forma harmônica para dar organicidade ao espetáculo, pois está tudo ali. Se dividirmos o espetáculo teremos partituras perfeitas, mas desconexas. Cenário, música, luz, atuação precisam encontrar suas medidas. O grande desafio reside aí. Uma boa revisão no texto também se faz urgente. Da maneira como ele se apresenta no palco, o público não afeito ao universo poético de Ana Cristina César sai sem perceber a força da sua escritura.
Aline Valim é poeta autora de Sittah